A identidade étnico-cultural: Um estudo das manifestações coridianas

Identidade étnico-cultural.

Identidade cultural

A identidade cultural de uma sociedade é formada pela junção das identidades étnico culturais que contribuíram para o seu processo formativo, civilizatório e emancipatório desta. Assim, o exame da identidade cultural de um grupo étnico específico, importa, primeiramente, percorrer os campos social e histórico do local em que se situa a identidade que se quer diagnosticar, para que, assim, se proceda à confirmação.


Traços atuais

As mudanças e transformações globais nas estruturas políticas e econômicas no mundo contemporâneo colocam em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirmação e manutenção das identidades étnicas assim, as identidades estão localizadas no interior das mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas contribuem. As identidades que construídas pela cultura são contestadas sob formas particulares no mundo contemporâneo – num mundo que se pode chamar de pós-colonial.


Construção da identidade

A construção da identidade é tanto simbólica quanto social, mas no que tange à identidade de um grupo étnico, verifica-se profundamente marcada pelas diferenças que se quer dar vistas.  A construção da identidade resulta de uma determinada ação, a partir da qual se compreenda o grupo identitário a que pertence e se torna possível afirmar sua identidade étnica e cultural, reproduzindo a sua ancestralidade. 


Diáspora

A diáspora africana ou a desterritorialização – como termo mais bem cunhado neste trabalho –, a qual teve a contribuição do Brasil por mais de três séculos, colocou negros e negras traficados do Continente Africano em condições de submissão, escravidão e despatrialização. O caso em questão remete à análise da identidade étnico-cultural dos remanescentes de quilombos, os quais a partir da Constituição Federal de 1988 passaram formalmente a gozar o direito de ter tituladas as terras que ocupam e guardam suas reminiscências decorrentes do regime escravocrata. Evidencia-se, então, que naquele local, desenvolveram-se sociabilidades capazes de reconstruir a identidade étnico-cultural e de se reestruturarem a partir da história escravocrata vivenciada por seus antepassados.


Construção social

A construção social da identidade ocorre diante de um contexto determinado em que implicam as relações de poder pré-estabelecidas. Desta forma, a identidade étnico-cultural de grupos estigmatizados, pela ordem institucional, nasce a partir da resistência e da não aceitação dos princípios que permeiam e sustentam as instituições sociais e governamentais estabelecidas.  A identidade construída a partir da resistência se restabelece de forma material e cultural se redefinindo e provocando transformações estruturais e sociais em toda sociedade.


A Territorialidade e a Ancestralidade: Espaço geográfico ao território quilombola 

Territorialidade

A comunidade de São Roque-Pedra Branca habita um espaço geográfico especialmente acidentado, com características peculiares. Sua história social de constituição encontra-se extremamente vinculada à territorialidade e à ancestralidade dos remanescentes de quilombolas que vivem no local, pois, no passado, como forma de enfrentamento ao regime político escravocrata vigente a época no Brasil, os escravos escolheram aquele espaço para se aquilombar.  Pedra Branca foi o local escolhido, no decorrer século XIX, para ser constituído um quilombo, servindo de território aos escravizados que resistiam ao sistema e buscavam liberdade.  


Território

Desta forma, a constituição de um território necessita de uma delimitação de espaço físico e geográfico, na qual tal demarcação é fator determinante, juntamente com um conjunto indissociável de objetos e ações que comporão as relações humanas, e, nestas se expressará a intencionalidade ideológica do grupo humano fixado naquele espaço em que se constituirá o território.


Sentido de espaço

Para se compreender o sentido de espaço e território, infere-se observar que no território em que se abriga uma coletividade, encontram-se ali, cotidianamente, as manifestações culturais, políticas e sociais do grupo ocupante que tem, acima de tudo, um comprometimento étnico originário com a intencionalidade da ocupação.  

Os territórios carregam consigo todas as questões culturais daquele grupo. Portanto, a forma de organização de um espaço geográfico em território se dá pelas relações e ações que se materializam com a ocupação humana do local, nas dimensões social, política, ambiental e, sobretudo, cultural do grupo ocupante. 


Surgimento

Nesta perspectiva geográfica, surgiu a Comunidade de Remanescentes de Quilombo São Roque, na qual os ocupantes, diante do sistema que os escravizava, observaram naquele determinado espaço geográfico a possibilidade de conquistar a liberdade e de construí mecanismos de recuperação de sua identidade étnica, fragmentada pelo processo escravocrata.  Assim, o território passou a ser a expressão cultural do grupo de remanescentes que, ainda hoje, usa e ocupa o local.


Pertencimento

Neste sentido, primeiramente infere-se notar que a manifestação de pertencimento a um determinado território indica, sobretudo, conceber o local agregado aos seus valores simbólico e representativo da identidade étnica e cultural do grupo que ali vive, pois, naquele território está consubstanciada a memória coletiva do grupo que usa e ocupa o espaço, mantendo-se vivos os costumes e tradições que remontam à época de seus ancestrais.


Cultura territorial

É na cultura territorial que se encontram: os elementos condicionantes da formação do homem e sua visão do mundo, sobre a qual, ele olhará, compreenderá e, situar-se-á nas coisas que o mundo reproduz. Assim, pode-se definir como brutal a violência sofrida pelos africanos envolvidos no processo escravocrata, quando passaram pela desterritorialização.


Características gerais

A Comunidade de Remanescentes do Quilombo São Roque constitui-se em um território a partir das relações sociais que se materializam naquele espaço ocupado. Espaço este em que as manifestações sociais, políticas e, sobretudo, étnico-culturais, indicam a identidade territorial dos que ali residem, configurando a territorialidade, a ancestralidade e a identidade étnico-cultural dos descendentes de escravos do quilombo São Roque-Pedra Branca. Após a abolição, além de permanecerem usando e ocupando o território, os remanescentes, mesmo diante de todas as adversidades geográficas e sociais, continuam mantendo as técnicas tradicionais de plantio e colheita, as quais conceberam secularmente de seus antepassados, por meio da oralidade. 


Neste sentido, é necessário registrar que na época da formação do quilombo os escravos que desciam à região pertenciam a estancieiros do Rio Grande do Sul, mais especificamente a São Francisco de Cima, eles vinham fazer o plantio de lavouras na comunidade de Roça da Estância que fica vizinha a São Roque-Pedra Branca.  Nas terras da Roça da Estância, desemboca a “Serra do Cavalinho”, caminho que foi muito utilizado pelos escravos no transporte das colheitas feita na localidade e levadas a São Francisco. Esta mesma Serra, a qual serviu de caminho aos tropeiros na condução do gado ao norte do País no Século XIX, levou os escravos a descobrirem São Roque e lá fixarem um quilombo. 

Geograficamente, a Comunidade de Remanescentes do Quilombo São Roque fica especificamente no interior dos canyons, em meio às escarpas, visto que, a escarpa Pedra Branca é uma rocha que serve como marco limite da Serra Geral, e é sempre referida pelos remanescentes como sendo uma espécie de protetora natural da comunidade. A imponente Pedra Branca é uma rocha de característica peculiar, que tem ao seu redor uma vasta vegetação nativa da Mata Atlântica e, ao topo, voltada para a direção da comunidade, tem a coloração branca, sem vegetação. A este fato, os remanescentes se reportam como filhos da Pedra Branca, nascidos daquele chão, ou seja, daquele torrão, como costumeiramente se referem. 


As Manifestações Coloquiais e Identitárias dos Remanescentes de Quilombo da Comunidade São Roque

Abordagem e entrevistas

Faz-se necessário efetuar a descrição das manifestações cotidianas, no que diz respeito ao modo de fazer, viver e agir dos Remanescentes de Quilombo São Roque. Buscar-se-á verificar e confirmar as reminiscências do quilombo presentes no cotidiano e na vida dos remanescentes de São Roque, fato que os torna uma população tradicional, diferenciada culturalmente. Assim, a identidade que se quer destacar, refere-se à identidade territorial dos Remanescentes do Quilombo da Comunidade de São Roque - Pedra Branca, município de Praia Grande/SC.


As entrevistas

A seleção das entrevistas deu-se de forma cuidadosa, objetivando constituir uma amostragem argumentativa colhida da fala dos Remanescentes que, em sua grande maioria, possuem mais de 45 (quarenta e cinco) anos de idade. Neste sentido, primeiramente, se evidenciará a história de constituição do quilombo na Pedra Branca, hoje Comunidade São Roque, que, de maneira especial, resultou na constituição do território identitário dos remanescentes que ali habitam. 


Constituição do quilombo

A constituição do quilombo na Pedra Branca, conforme já foi explicado, tem os registros de ocupação na data de 1824, porém, em período anterior ao datado os escravos eram deslocados de São Francisco de Paula de Cima da Serra à Comunidade de Roça da Estância, para que efetuassem, naquela localidade, o plantio e colheita das roças de seus senhô, os estancieiros rio-grandenses.  


Serra do cavalinho

Esses escravos que desciam e subiam a “Serra do Cavalinho”, tinham a mobilidade rigorosamente vigiada, ficando impedidos de usufruir a liberdade. Mas, podiam buscá-la por meio da fuga e, ainda, informar aos outros escravos que ficavam nas fazendas e senzalas que havia um local, conhecido por Roça da Estância, de onde podiam seguir e chegar à Pedra Branca, uma escarpa imponente, a qual foi observada atentamente pelos cativos como ponto de referência em meio à mata fechada.  



Fugas

Os escravos que não puderam “fugir” e ocupar o local que compreendiam ser seguro, manifestaram sua resistência e repúdio ao sistema político escravocrata, levando aos outros escravos o conhecimento do espaço geográfico não habitado. 


Belezas inigualáveis

E foi dessa forma, possivelmente, que o quilombo Pedra Branca se constituiu em meio aos cannyons e as escarpas, de belezas inigualáveis que compõe o local.  

Relatos de origem da comunidade

Os remanescentes do quilombo relatam a origem da comunidade: “[...] eles vieram para cá em busca de liberdade né! [...] sei que eles nasceram na Senzala, sei que nasceram em uma senzala em São Francisco de Paula, onde o senhô (termo usado pelos remanescentes ao se referirem aos “donos” e proprietários de negros escravizados deles nasceu também) [...] pertencia a São Francisco de Paula [...]. Sei que o meu lado paterno é que era de escravo.

Sei, ainda, que minha bisavó paterna se chamava Maria “macaca” e era reprodutora. E, meu bisavô paterno se chamava Adão, o Paquê! também reprodutor. Eles eram escravos de Israel Fogaça. [...]. Meus avós, vieram para cá, para escapar da escravidão, vinham por trilha de anta, dos bichos que tinha no mato. E, aqui formaram seu caminho. Aqui onde estou é meu de boca só [...].”  


Apropriração do espaço

A apropriação do espaço geográfico, constituindo-se em um território quilombola, proporcionou, além da liberdade, reconstruir a identidade étnico-cultural dos escravos ali aquilombados, a qual se mantém preservada pelos remanescentes que vivem no local. 

Eles compreendem que no território que habitam estão tecidas as dimensões sociais e afetivas que se encontram na gênese do grupo e, desta forma, é no espaço ocupado que o sujeito se reconhece e reconhece os outros membros – remanescentes.


O Marco de Terras

O marco das terras de cada remanescente rege-se e mantém-se de igual forma como foi estabelecido pelos antepassados. Deste modo que, ao serem perguntados quanto aos limites territoriais de suas terras, eles se expressam afirmando que: “[...] meu terreno vai da grota funda à linha seca, pelo lado de baixo da estrada geral, a que dá acesso à comunidade. [...] Grota, se você não sabe é esses arroios d’água que descem de cima da serra, que, aqui a turma toda chama por grota[...]” 


As atividades agrícolas do passado ao presente

O transporte das sementes e mudas, bem como dos produtos colhidos, são feitos por meio de animal cargueiro que percorre o trajeto da roça à casa do remanescente e vice-versa, pois, a geologia da região impede o uso de outros meios de transporte. Assim, o cargueiro é o facilitador e aliado dos remanescentes. Por este motivo, é comum encontrarmos no caminho da comunidade, cargueiros, ao invés de carros ou bicicletas. 

Local de nascimento

O local exato de nascimento de cada remanescente é por eles descrito de forma a relacionar e vincular-se a Pedra Branca evidenciando-se sempre a imponente escarpa. Disso infere-se que a Pedra Branca não foi somente referência para a constituição do quilombo, mas, serviu e serve como uma espécie de protetora natural para os remanescentes que ainda vivem ali: “[...] nasci na parte que fica a Pedra Branca, mas do lado que fica o Rio Grande do Sul, na época era Distrito de Glória, hoje se chama... Pirataba [...] meus pais também são nascidos aqui. A mãe ali no Faxinalzinho e o pai no Mampituba/RS[...].. [...] Na Pedra Branca! eu nasci e me criei aqui! ... é! ...! Aqui na Pedra Branca [...]”.


Os ancestrais dos remanescentes 

Os pais dos remanescentes entrevistados, que na grande maioria já faleceram, também nasceram ali na comunidade, uns, mais próximo da escarpa - Pedra Branca -, outros às margens de um dos rios[1] ou ao lado de uma das 34 (trinta e quatro) grotas, que abastecem a Comunidade. Assim, a natureza local tornou-se pano de fundo indispensável no contexto sócio-histórico dos remanescentes: “[...] Meu Pai, nasceu no São Gorgonho - Mampituba, já minha Mãe, nasceu na Grota Funda, antes de atravessar para ir à escola, lá onde fica o centro comunitário e a escolinha. Os meus avós pelo que sei nasceram e morreram aqui também”


Deslocamentos

Neste contexto, importa ainda relatar que os Remanescentes se deslocam a pé para irem à roça, para se visitarem e para irem às aulas de alfabetização de jovens e adultos. Os Remanescentes não fazem uso de bicicletas, carros ou motos, pois a geologia da região, tanto quanto as condições financeiras dos remanescentes, não proporcionam essa mobilidade facilitada que se tem no meio urbano. Os remanescentes usam apenas o ônibus escolar que leva (uma vez ao dia) e busca as crianças da escola, a qual fica no centro da cidade de Praia Grande. Esta é a forma para venderem seus produtos e comprar os que não produzem. Da comunidade ao centro de Praia Grande, ou à praia como os remanescentes se referem -, tem uma distância que equivale a 30 km (quilômetros) percorridos em estrada de chão batido. 


Filhos da Pedra Branca

Desta forma, a Comunidade de Remanescentes do Quilombo São Roque-Pedra Branca, com a luta de seus antepassados, constitui o território descrito: “A maioria dos membros [...] hoje [....] não possuem terras para plantar. São as relações de reciprocidade tecidas que garantem a permanência daqueles que não possuem terras próprias para a colocação de roças. Para isso é preciso que esses sejam vistos com “trabalhador”, ou como “sabedor” da colocação de roças. As identidades de trabalhador e filho de Pedra Branca garantem as parcerias ou alguma empreitada. [...]. É preciso ser “filho de Pedra Branca” e ter o objetivo comum de reivindicação da titulação e de uso comum da área para participar da Associação[...]. Dona Maria Rita ao falar sobre o pertencimento de um dos membros sublinha que ele não é “moreno”, mas é filho da Pedra Banca: “os pais eles nasceram ali”. O ser filho da Pedra Branca”, pressupõe não apenas ter nascido, morado no local ou ser parente, mas ter a comunidade e o espaço físico como lugar de pertencimento”.